terça-feira, 10 de abril de 2012

Lição de boas maneiras

Hoje no almoço assisti a uma reportagem sobre o ensino de boas maneiras nas escolas. Achei um pouco estranho como eles pareciam misturar etiqueta com moral, mas não importa. O importante é que as lições não estavam funcionando. Uma criança, ao ser perguntada sobre o que deveria fazer se um coleguinha chegasse com um pacote de bolachas, respondeu que "por favor, dá um pouquinho pra mim".  A despeito da graça que possam ter encontrado o repórter e sua turba, não posso deixar de fazer algumas objeções, pois a resposta me pareceu errada. Errada, errada, errada. Em primeiro lugar, não se pede a ninguém que lhe dê comida, com ou sem por favor. Deve-se esperar que a pessoa ofereça, e só então recusar a oferta. Acaso insista, poderá aceitar uma vez, e só se buscará pela segunda e terceira vez se se repetir a oferta. É claro que estamos falando de uma situação formal, e é claro que existem outras possibilidades, mas a maneira mais fácil é essa que estou indicando.

Em segundo lugar, não se fala "me dá um pouquinho, por favor, meu coleguinha". Se estamos falando de boas maneiras, deverá haver um mínimo de requinte. Não se estende a mão como um esfomeado irlandês, nem se aborda a pessoa como um assaltante de caminhão. Deve-se agir de tal forma que lhe pareça indiferente se o outro ostenta ou não um pacote de bolacha, pois em casa recebe alimentação suficiente de seus pais e não precisa farejar comida nos bolsos de seu colega. Antes se aguardará tranquilamente, sem trair qualquer ansiedade nos olhos, que lhe ofereça uma bolacha, e dirá, sem qualquer resquício de embaraço ou surpresa, que "não, obrigado". E quando finalmente chegar a hora, tomará do alimento como quem partilha, e não como o animal voraz e vil que surrupia a carne de entre os leões. Agirá com calma e gentileza, consciente da dignidade própria e da que emana ao seu redor, sem nenhum "inho", sem nenhum desmerecimento. Pois as boas maneiras são também rituais, passagens entre aqui e lá, e não deverão ser feitas sem um mínimo de respeito e paciência até que tudo se acomode conforme uma dignidade maior.

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Sobre as boas maneiras VII

Quando tentei falar sobre as boas maneiras, vi-me forçado a pensar sobre o que era a sociedade, que espécie de comportamento exige e que fins lhes são próprios. Ao longo de minha prosa, porém, me perdi, e observo que a sociedade a que geralmente me referia acabou por se tornar algo bastante estranho à maioria de meus contemporâneos, e que as boas maneiras, que não são tudo o que há na sociedade, deixaram-se transformar no único estuário possível de suas ações. Se foi com muita dificuldade que fiz assomar a sociedade de meu entorno, a nossa velha e estimada sociedade que, embora velha, não pode ser remontada a desde sempre, não o fiz por um ingênuo saudosismo, mas por um instinto de preservação. É provável que tudo o que eu tenha dito ou venha a dizer torne-se posteriormente apenas uma busca inútil, uma busca em voga e que se tornará motivo de desprezo a medida que se vulgarize. Mas creio ter razão suficiente, senão ao meu modo, ao menos como me verão.

Se me ancoro nas boas maneiras, é porque nelas encontro a dignidade esquecida, a dignidade esquiva em cada grito de comerciante e em perguntas embaraçosas tanto de empregados como de empregadores. Desgasta-me, consome-me a alma que um qualquer ouse ter a pretensão de conhecer meu íntimo. O que venho a fazer, por que o fazer, o que sinto e por que sinto são assuntos pertinentes tão somente a mim. Se algum dia achar necessário contá-los, eu, e somente eu poderei encontrar a ocasião. Que meramente insinuem que eu deva revelar o que pertence somente a mim soa-me como grande ofensa à qual jamais perdoarei. Tomem-me um cumprimento, um aceno de cabeça, um comentário sobre o tempo e sobre o presidente da república, mas não queiram ir além disso sem o meu consentimento. Não estou ignorando os círculos de amizade e a possibilidade de criá-los, mas apena rejeito que isso seja imposto. Atirem-me na miséria se o quiserem, mas meu coração não é contêiner de lixo para pequenos empresários e vendedores de roupa ficarem vasculhando.

Eis aqui as boas maneiras. Entendo que a maioria das pessoas as tomem como encenações-opressoras-do-indivíduo, mas a maior opressão está em fazer revelar, e não em ser obrigado a ocultar o íntimo. Querem-no porque sabem suas possibilidades, a utilidade de conhecê-lo e controlá-lo. Há uma grande diferença entre o dever de dar bom dia e o dever de desejar bom dia, e enquanto o primeiro exige apenas um gesto formal, o segundo não se opera senão sob uma transformação cara entre o que se quer e o que se deve querer. Acusam os cortesãos de ocultar seus verdadeiros sentimentos, mas não percebem que assim fazendo preservam e mantêm a um só tempo o espaço de coesão entre os indivíduos e os indivíduos mesmos. Se uma relação deverá ser levada a um nível maior de intimidade, essa é uma decisão que cabe a cada um em particular. Aliás, meramente permitir-se mostrar em lágrimas perante o Grande Público parece-me um ato vil, uma ofensa como se me obrigassem a assistir a uma operação de vísceras, estirando-as sanguinolentas e brilhantes ante minha surpresa e confusão. Pois se reconheço dignidade em mim, sou obrigado a estender a meus semelhantes, e vê-los atordoados no chão do chiqueiro é como se eu mesmo também estivesse sendo denegrido.

quinta-feira, 5 de abril de 2012

Sobre as boas maneiras VI

Assim é que posso conduzir-me de maneira adequada e inadequada, e que quando de maneira adequada, poderei conduzir-me de maneira ordinária ou extraordinária. Já havia dito que o fato de uma conduta parecer extraordinária não significa que seja inadequada, nem muito menos indigna, e, portanto, ao falar em conduta adequada refiro-me tanto às maneiras comuns quanto às incomuns. Mas será que apenas nisso reside a diferença entre ser digno, indigno e mui digno? Observo, ao contrário, que nem sempre aquilo que é inadequado é indigno, e nem sempre o que é adequado é digno. Porém, o fato de ser possível que um ato adequado seja valorado como indigno e um ato inadequado seja valorado como digno ocorre porque os termos com que se qualificam partem ora da sociedade mesma, ora de um âmbito estranho a ela.

Quanto ao fato de que os valores da sociedade não sejam todos eles válidos fora de seus próprios círculos, não cabe a mim fazer reprovações entediantes e inúteis, ao menos não agora. Interessa-me antes entender o significado de ser digno ou indigno enquanto em sociedade e perante a sociedade. Não se trata de ignorar que a sociedade não exista somente enquanto corte, mas por uma questão de método entenderei assim. Chamem de sociedade, chamem de sociedade cortesã, a verdade é que ela possui características próprias que podem ser analisadas separadamente. Talvez, inclusive, não somente por um esforço de abstração, mas é possível observar que as pessoas possuem diferentes comportamentos quando em família e quando entre amigos, quando em ambiente de trabalho e quando em círculos mais formais a que chamo sociedade.

O que é, pois, ser digno em sociedade? Perante ela mesma, não se poderá chamar de adequado aquilo que contraria os protocolos. Portanto, desde já a dignidade social só poderá ser alcançada se respeitadas as regras de conduta existentes, sejam elas óbvias ou não, a depender da sensibilidade de cada um. Mas adequado a quem, onde e para quê? Em primeiro lugar, quando nomeamos a sociedade, estamos referindo-nos normalmente a um espaço que comporta as pessoas em um nível de conduta mais formal e, portanto, mais homogêneo. Essa homogeneização não implica, no entanto, ausência de identidade; pelo contrário, em raros momentos é possível encontrar papéis tão definidos quanto aqui. Diz-se condutas mais homogêneas porque, sendo estipulados os papéis, serão pelo mesmo motivo limitados em número.

É evidente que a espontaneidade enquanto transformada em conduta social já será diferente da espontaneidade possível nos círculos mais íntimos. Ela não existirá senão sob uma forma calculada, com limites mais ou menos claros e preestabelecidos, e assim serão todos os atos, as emoções, os sentimentos. Porém, não se trata de supressão. As intenções, os desejos, os sonhos, todos os sentimentos, enfim, que as pessoas trazem consigo independentemente de tudo não deixam de existir em sociedade, mas surgem nela sob uma roupagem própria, a roupagem cortesã e necessária para que todos possam expressar-se sem se destruírem mutuamente. Os protocolos sociais são como diques: separam a terra seca do mar. Mas mais do que proteger os indivíduos, protegem a sociedade de seu ímpeto e de sua vontade insaciável.

Mas com isso ainda não se distingue totalmente a sociedade. Regras pertencentes a outros âmbitos igualmente separam e comunicam os indivíduos. O que diferencia a sociedade de outros espaços é a espécie de interação que cria. E que interação seria essa? Será talvez uma interação galante e refinada. Mas por quê? Talvez porque a sociedade funcione como um sistema planetário, com os astros em concerto, e qualquer coisa que funcione de forma padronizada e atendendo a uma certa hierarquia, de movimentos espiralados de ascendência e descendência, criará sofisticação, partindo-se desde o centro até a periferia. Eis, pois, a sociedade cortesã: círculos padronizados e dirigidos a um centro regente, perante o qual desfila seu séquito em um constante e predeterminado cortejo.

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Sobre as boas maneiras V

Alguns dirão que tal e tal pessoa agiu com dignidade, ou que tal e tal pessoa respondeu dignamente a uma pergunta, o que nada significa senão que se comportou de maneira apropriada: nem mais, pois que não se há de esperar que alguém aja apropriadamente supondo-se mais do que realmente é; nem menos, pois do contrário significaria humilhação indevida; mas justamente, conforme sua condição. Mas o que significa agir com propriedade? Não significará, certamente, o mesmo que dizer que determinado animal agiu conforme  a sua natureza, ou que determinado elemento químico respondeu a certa substância conforme o esperado. Agir de maneira apropriada significa mais do que responder à sua natureza, pois a sociedade não toleraria que se desse licença aos menores instintos. Tampouco poderá significar agir de maneira útil, não ao menos no sentido que se costuma dizer, pois comportar-se com propriedade não conduzirá a fim algum senão à própria estabilização da sociedade.

O que é então? Se agir inapropriadamente não significa uma mera ação contrária às expectativas, mas uma ação valorada negativamente, agir apropriadamente será a ação positivamente valorada. Nem sempre aquilo que não se espera é inapropriado, mas apropriado será até mesmo aquilo a que se chama de agir extraordinariamente bem, pois aquilo que é extraordinariamente bom não poderá ser ruim. Mas bom perante quem? Se se estivesse falando de agir piamente, bom será perante Deus. Se se fala de boas maneiras, boas serão as maneiras perante a sociedade. E quem é essa sociedade? Não se trata do ambiente familiar, nem dos amigos íntimos, mas daquele grupo mais ou menos homogêneo de pessoas que circulam à nossa volta, e nós à sua, sem que jamais queiram penetrar em nossa intimidade. É claro, entretanto, que o fato de que se age perante a sociedade não significa que as boas maneiras inexistam no ambiente familiar ou entre amigos, mas somente que seu referencial último é a sociedade. Quero dizer, ser apropriado entre amigos não significa que tal será considerado igualmente perante a sociedade, mas nada impede que as maneiras adequadas em sociedade da mesma forma sejam entre amigos.

Já disse há pouco que as boas maneiras não conduzem a fim algum a não ser à sociedade mesma. Isso porque o socialmente bom será a renúncia a qualquer movimento. Ninguém que aja com boas maneiras poderá seriamente pretender o rompimento de qualquer ordem, mas, ao contrário, verá que as boas maneiras fazem com que tudo se acomode como deveria ser. Não há glória aqui, não há conquista, e quando se fala assim, é apenas no sentido metafórico. Glórias, feitos, façanhas, tudo isso é uma linguagem mais própria de políticos e militares, mas que ganha uma coloração meramente divertida entre os cortesãos. E não poderia ser diferente. Enquanto os soldados marcham e flanqueiam, enquanto os diplomatas afastam o cano de uma arma com as pontas dos dedos, nos salões de toda a sociedade fulguram as taças e os coquetéis, e quase verdade alguma é dita, e quase objetivo algum é atingido, mas apenas um espaço de coesão entre aqueles que se veem, se aceitam, mas que não estão dispostos a ir mais longe do que isso. E aqui descansa toda a dignidade social a que todos almejam e a que todos devem encontrar.

Agir dignamente e, portanto, de maneira apropriada, é fazer-se ver perante a sociedade de forma valiosa, pois que em conformidade com suas expectativas ou, se de uma dignidade extraordinária, acima. Contudo, mesmo aqui não se disse tudo. Como será possível que alguém aja em conformidade e ao mesmo tempo de maneira extraordinária perante a sociedade? Se chamamos de ordinário agir adequadamente, e se a isso podemos chamar de dignidade, o extraordinário fugirá necessariamente ao padrão. E como algo que extrapola os protocolos sociais poderá ser digno da sociedade? A resposta, ao que me parece, só pode residir no seguinte: quando se chama de digno o agir extraordinário, não se está valorando positivamente algo novo, pois o novo é audácia e foge necessariamente aos protocolos sociais. Ao contrário, chamar de digno o extraordinário é fazer reconhecer neste o que já existia de intrínseco entre as normas de conduta, mas cuja conclusão poucos são capazes de levar, seja porque isso requer inteligência, seja porque exige uma qualidade moral incomum.

Tal como um músico talentoso explora as virtudes de uma flauta sem a destruir, aquele com qualidades incomuns saberá fazer-se notável na sociedade sem que para tanto tenha agido com insolência. Pois que comportar-se extraordinariamente bem não significa comportar-se inadequadamente, mas antes saber fazer-se notável apoiando-se na ordem e no consentido. Mas o que exatamente separa aqueles que agem adequadamente e de certa forma se ofuscam, daqueles que, sabendo ir além, fazem-se brilhantes e dignos? E, ainda, o que faz distinguir os que agem com superioridade dos que agem com subversão e audácia? É isso aproximar-se do que tanto chamam de hipocrisia da sociedade? Tais limites parecem ser mesmo muito acidentais, e deve ter-se em conta que a sociedade mesma é um espaço de encontros, não só de pessoas, mas também de ideias e atitudes, intenções muito mais profundas do que as meras formalidades. Tentar compreender de antemão o que é adequado, o que é extraordinariamente adequado e o que é inadequado, senão impossível, exige uma análise de cada situação.

quarta-feira, 28 de março de 2012

Sobre as boas maneiras IV

Quando se diz que alguém possui boas maneiras, não está se referindo a uma qualidade excepcional, a um eclipse de talentos e encantos, mas a uma harmonia de gestos e palavras, uma constância de entonação e de humor que não precipite os demais em sua própria pessoa. Quero dizer, não são nem a frieza histérica com que se fantasia de um inglês vitoriano, nem a cordialidade emotiva de um russo glutão; não são a exaltação de virtudes, nem o acanhamento completo, pois antes alguém que se conduza com boas maneiras tenderá a criar um espaço de conforto e amenidades. São, como já se me indicava anteriormente, intermediações entre as pessoas, acomodações gesticuladas e bem ditas que possam indicar a cada coisa um lugar justo e seguro. E é por isso que sua perfeição mede-se em termos de adequabilidade, como, por exemplo, ao se dizer que tal assunto é próprio ou impróprio à mesa, ou que tal atitude não convém a um jovem.

Mas, ora, isso não leva a uma assunção de papéis, de representações, de encaixes e estojos? Sim, é verdade. Ter boas maneiras significa agir e falar adequadamente em determinado espaço, perante determinadas pessoas e levando em conta sua própria condição. Um rei deverá falar como um rei, um político como um político, e um político deverá saber quando não ser político e quando sim. Por outro lado, se as boas maneiras tendem a definir estados e ações, seja lá com relação a que valores, elas também podem possuir um núcleo central que seja adequado a todos e em todos os lugares. Pois se é verdade que tal comportamento apenas caberá aqui e lá, e se é verdade que as boas maneiras podem conduzir os espaços ao conforto tão bem quanto ao enrijecimento, na medida em que cristalizam os atos e as reações em agradabilidades e jogos de mesuras, há nelas um conjunto inquebrantável que, pela virtude de servir a todos, poderá conservar no espaço uma necessária liberdade contra esses excessos da sociedade.

E qual seria a essência de tais boas maneiras? Obviamente que da mais simples e da mais comum. Não por isso significará menor refinamento, pois não há boas maneiras sem refinamento, caso contrário se cairia no absurdo de poder atribuir-se boas maneiras aos primeiros instintos. Por exemplo, comer um frango de maneira adequada não pode ser medido através do modo mais fácil ou útil, mas através de sua adequação a determinados valores: se se valoriza a parcimônia, não deverá ser comido demonstrando-se demasiado apetite. Se será com as mãos ou com talheres, já isso é uma questão que considero mais contingente. Porém, as boas maneiras nunca significarão outra coisa senão determinado refinamento, e o meio de buscá-lo não se resumirá a um somente. Logo, ter em vista boas maneiras em um núcleo que atenda a todos não dispensará refinamento, mas significará apenas um código mais amplamente aceito, coisa que não acontece senão a um número bem restrito.

Mas observo que a confusão apenas cresceu. Será realmente possível que exista? Quero dizer, será possível que exista uma etiqueta que possa ser usada por todos e em todos os lugares? Ou será que  um sacerdote deverá comportar-se como um sacerdote e nada mais além? Parece-me que não. Parece-me, aliás, que a chave da questão, embora não a responda, está no fato de que as pessoas não podem reduzir-se a seus personagens sociais, caso contrário, já não funcionariam as boas maneiras como muros, mas seriam elas mesmas o tudo. Devem, portanto, existir em um modo reduzido e simples, e devem ser de tal efeito que permitam ora ou outra a sua transgressão. Pois as boas maneiras não são o ponto em si do mundo, mas antes seus contornos, suas guirlandas e seu passeio à loja de flores. Não almejam o céu, mas tampouco dele se distanciam, e se seria insensato pensar-se em fazer delas todo o objeto de sua vida, mais ainda seria dispensá-las, pois espaço social algum sobreviveria se todos se pusessem a agir da maneira mais confusa possível.

terça-feira, 27 de março de 2012

Sobre as boas maneiras III

Já é a terceira vez que tento levar o assunto, e a essa altura deveria estar-me perguntando o que são as boas maneiras, mas não farei isso senão em outra oportunidade. Por ora, continuarei a conduzir-me estreitamente, circular e sem nunca de fato atingir o essencial. E nada mais adequado do que conduzir-se assim em se tratando de boas maneiras. Afinal, quando se faz uma cortesia, uma genuflexão, uma reverência, não estamos pretendendo outra coisa senão deslizar delicadamente ao redor de um ponto sem nunca nele cair.

Mas vejo que estou passando do horário. O que tão decididamente me trouxe foi a recordação do vendedor da loja de tênis que insistentemente me tocava no ombro. Sabe Deus de onde ele veio, mas me parece bastante desagradável ser forçado à intimidade com alguém por meio de contato físico, ainda mais em se tratando de uma relação puramente de comércio. Meu pai pode até tê-lo achado simpático, mas ele não me engana.

Talvez eu até devesse perdoá-lo pelo incômodo, pois sei que é uma mão invisível que o força a degradar-se perante os demais, concedendo lisonjas a situações evidentemente banais e exaltando a dignidade de um ambulante qualquer. Porém, se é de fato uma mão invisível, digamos então que ele força essa cordialidade justamente porque as pessoas gostam disso, porque sabe que assim elas comprarão e que se acaso agisse de outra maneira se sentiriam ofendidas.

Pois bem, faço-lhe essa indulgência, mas apenas para estender meu julgamento a toda a sociedade. Pois se de fato em geral se pensa que é adequado, ou melhor, desejável que um vendedor dê-se a liberdade de tocar alguém no ombro, puxando para si o seu cliente como seu mais habitual amigo, creio que devo fazer minhas objeções de porque devemos querer uma postura diferente. Vou tentar ser bastante breve, pois a verdade é que me ocorrem inúmeras.

Em primeiro lugar, eu chamo a atenção para a inadequação do âmbito. Uma relação entre vendedor e comprador não precisa, obviamente, ser a mais fria possível, mas acho que ninguém realmente está disposto a abrir seu coração no balcão de uma loja. Se existe uma coisa que nenhuma cordialidade do mundo conseguirá atingir é o coração. Pois o coração é justamente o que as boas maneiras tentam contornar e evitar, e não será num jogo de compra e venda que isso será diferente.

Desde a perspectiva do vendedor, parece-me igualmente inadequado que o comprador, e não mais ou tão somente o vendedor, exija dele essa afeição. Se não se pode exigir do comprador que exponha o coração, do mesmo modo o vendedor não deverá expor o seu. Forçar sentimentos é romper a fina casca que nos protege do mundo, e a degradação é verdadeira em ambos os polos, a não ser que alguém me prove que possa haver uma relação que não envolva no mínimo dois pontos.

Em segundo lugar, considero que as verdadeiras intenções, os desejos secretos, a vontade última e recôndita de toda pessoa não podem ser transpostas ao mundo sem mediações adequadas. E uma dessas mediações é o que nós chamamos de boas maneiras. O que um vendedor faz ao tocar seu ombro e chamá-lo à amizade, embora possa ser considerado por muitos como simpatia, é corromper essa mediação e manipular-lhe a vontade.

Pois certamente ele não deseja sua amizade, nem mesmo tenta criar um espaço agradável de convivência, mas tem como fim último a venda de um tênis, de um aparelho televisor, de um serviço de telefonia. As boas maneiras, porém, não são, creio eu, artifícios que sirvam à vontade de um único alguém. Algo tão antigo não pode ser identificado como uma armadilha. Ao contrário, as boas maneiras são, ao que parece, mediações adequadas para que todos possam mover-se sem se expor.

E não há dúvida de que ele poderia ter agido de modo diverso. Há maneira certa para tudo nessa vida, e, nessa situação, não era tratar-me como se fosse seu amigo, pois eu nem o conhecia e tampouco buscava amizade. Antes houvesse se limitado a ser gentil, indicando-me o produto e respondendo em exatos termos, e não tentando comover-me à compra, mas dignamente esperando que a situação por si só revelasse sua necessidade.

segunda-feira, 26 de março de 2012

Sobre as boas maneiras II

Desta vez falarei sobre as boas maneiras. Não à mesa, coisa que suas mães já devem ter ensinado, mas em sala de aula. Desde há quase duas décadas vivo em uma, e penso que muitas outras pessoas também, por isso acho que o que vou expor aqui tem algum interesse prático... pela primeira vez em meu blog. Nunca vi ninguém mencionar nada a respeito, mas tenho cá comigo que possui um sentido comum e intuitivo, principalmente para você, meu caro colega invisível, que, assim como eu, preza pela ordem e pelo silêncio.

Em primeiro lugar, falemos sobre a carteira-sanduíche, recheio de biscoito, o creme do seu pavê. Confessemos o quanto é desagradável estar situado entre dois amigos que não são seus amigos, mas apenas entre si. Nessas ocasiões, penso que teria imenso gosto em estapear as bochechas de quem a todo instante fica voltando a cabeça para trás para bisbilhotar, chamar a atenção, conversar, mencionar algo que-não-sei, e tudo isso se passando como se quem está imediatamente atrás simplesmente não existisse. Pois desde pequeno sala de aula foi-me ensinado assim: o professor entrou, silêncio e postura até que termine.

Mas esse argumento também valeria para os colegas do lado, da frente, do fundo, enfim, para todos. O principal motivo não é a sua inquietude ou a falta de sentido de ordem, coisa que eu tenho muito prazer em ignorar, mas o fato de que, ao voltar seu rosto em minha direção, eu percebo que tal rosto possui dois olhos; dois olhos como dois faróis, enormes e possuídos. E eles carregam uma violência que me incomoda: a violência de dois faróis me atravessando, dois fachos invasivos a que eu devo simultaneamente atentar-me e permanecer indiferente. Como se isso fosse possível.

Muito bem, é verdade que não se pode proibir que em todas as situações alguém olhe para trás, porém isso deve ser feito de um modo discreto, sereno e rápido. E que não se repita o gesto senão por extrema necessidade, o que significa que muito provavelmente só deverá ser feito uma única vez. Pois que ninguém pode olhar para trás, encontrar-se com os olhos de outro e sair levianamente. Essa conjunção involuntária é amarga demais, é trazer à consciência, de novo e de novo, o fato de se estar rodeado por estranhos; é trazer à tona uma intimidade entre duas pessoas sem que para tanto se estivesse pronto ou fosse querido.

sexta-feira, 23 de março de 2012

Sobre as boas maneiras

Não falarei das boas maneiras, porque às vezes tudo o que a gente pode é permitir que as pessoas continuem fazendo o que elas estão fazendo, seja lá o que estejam fazendo. Eu nem sei mais se seria desejável que as pessoas começassem a seguir as regras que me norteiam, ou melhor, um código de regras que eu muito provavelmente desenvolvi ou recriei desde fontes não muito claras. Hoje, sou muito mais tolerante e flexível do que era (com os outros, comigo sigo como sempre, pois jamais cederei). Mas nem sempre consigo ocultar meu desprezo. Dou-me conta disso quando, caminhando, vejo alguém cuspindo para o lado, sem a menor deixa de que aquilo poderia parecer repulsivo aos outros. Minha reação está além de mim: fecho a cara e imobilizo meu pescoço, olhando fixo para frente, sem a menor misericórdia para com a pessoa que, percebendo minha desaprovação, passa por mim de cabeça baixa. Mas já fiz pior. Há alguns anos atrás, quando voltando da faculdade, o colega que me acompanhava interrompeu minha já sôfrega tentativa de manter um diálogo arranhando asquerosamente a garganta e cuspindo no chão. Parei de falar e fiquei esperando que se desculpasse, coisa que, para minha consternação, não aconteceu. (A faculdade me ensinou muitas coisas, e uma delas é que os estudantes parecem sofrer uma regressão de maneiras quando longe de suas casas paternas).

E como se eu já não houvesse visto de tudo, sou pego de surpresa por meu professor. Não sei em que parte eu estava, mas acho que era uma daquelas coisas que as pessoas não se importam de ouvir e estão muito mais interessadas em encontrar uma oportunidade para enfiar uma ideia que latejava em suas cabeças. Eu estava em sua sala, discutindo sobre o projeto de monografia, e já era suficientemente triste reparar nas condições do escritório. Na verdade, ele já possuía um jeito exaltado, mas foi com uma entonação melhor com que ele se debruçou sobre a mesa, levantou os olhos e perguntou: "Você já pensou em fazer uma pesquisa de opinião a respeito?". Disse que não, mas já adivinhando e fazendo um muxoxo em pensamento. "E você não acha que seria interessante para o seu trabalho? Porque é uma coisa muito simples. Sabe o que você faz? Você vai lá naquele terminal de ônibus no horário de pico, quando aquilo está cheio de gente, e vai de pessoa em pessoa, ver o que eles acham. Só chegar e perguntar se concordam ou não. O que você acha?". Respondo que não sei. "Porque na verdade, na questão do seu trabalho, você poderia incrementar..." "Acho que a opinião deles não é muito importante", eu respondo, em um arrombo de sinceridade. Não foi minha intenção cortá-lo assim abruptamente, mas é que a ideia de ir no terminal de ônibus em horário de pico, segurando uma pranchetinha e indo de pessoa em pessoa perguntando àquelas caras cansadas feito um pateta me passou feito um lenço umedecido com álcool. Talvez ele também tenha se dado conta da insensatez, e voltou a se acomodar na poltrona.

Por quê? Porque há regras, muitas regras que, embora eu não me encontre disposto para impô-las, não quero desobedecê-las sem antes estar convencido de coração que não merecem ser seguidas. Eu particularmente   não acho que seja adequado infiltrar-se em um ambiente tão hostil e tão apolítico como um terminal de ônibus, em meio à multidão e ao forte calor, para interromper mentes já extasiadas do trabalho com perguntas bobas de sim/não. É isso ser cruel? Sinceramente, já longe de minha postura inicial, eu tenho quase certeza de que eu estou certo, de que o bom-senso, ao menos dessa vez, estava comigo, e que ele só não viu isso porque estava muito abitolado com falsos moralismos e demagogias; preocupado demais em atender às classes negligenciadas e totalmente esquecido da velha etiqueta, como não rir alto ou falar enquanto mastiga. Onde foi que ele desaprendeu regras simples de convivência? Ou talvez nunca realmente parou para pensar. Mas não é muito difícil. Imaginar-se no lugar do outro, por exemplo. E aqui, para finalizar, faço uma confissão. Não foi somente pensando no bem daqueles trabalhadores na rodoviária que rejeitei com tanta firmeza a proposta do professor. Não me dou muito bem em servir cafezinho, e se me obrigarem a fazê-lo, eu verto a cafeteira nas suas visitas. Não que eu não ache realmente importante a opinião das pessoas do dia-a-dia, mas eu jamais me submeteria à condição humilhante de sair por aí consultando-as sem sequer estar investido da impessoalidade de uma autoridade pública. Antes me tranco no gabinete e fico a arrumar cartas. Se eu quiser uma opinião, telefono para as pessoas de costume, coisa que sempre me bastou.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Preciso

Essa mulher no banco de trás está cutucando-me no ombro, soprando baixinho por minha atenção. O que foi? Sentei em cima do seu gato? "Não é isso" - ela me responde - "é que o seu chapéu está quase tocando nas minhas sobrancelhas e...". Como é que é? Que insolência! Nem respondo. Levanto-me, pois pela janela vejo que chegou a hora de descer do ônibus. Estão cada vez mais ousados: o garçom, o pintor, a atendente de padaria. Dessas afrontas o mundo sempre sai ileso, mas haverá um dia em que eu não descerei assim tão passivo, e pelas ruas correrei a incendiar suas casinhas de cachorro-quente.

Que pensam que sou? Que sou um deles? Acaso eu visto as mesmas roupas? Acaso eu sustenho os mesmos panos, os mesmos meneios? Sequer assisto ao mesmo programa de televisão! Eu nem tenho televisão; mandei penhorar juntamente com o rubi do anel que eu havia herdado, e que agora porta uma pedra de zircônio. Estou falido, é a bancarrota de todos os meus sonhos. Mas isso não importa. Não permitirei que me dirijam a palavra enquanto eu estiver encurralado no elevador, nem aceitarei que me enfiem panfletos nas mãos enquanto eu estiver andando distraído.

Que vão fazer? É isso uma nova moda, injuriar-me ao pressuporem que no mesmo cocho eu devo comer? Pois modas não existem, eu respondo. O que eu carrego é antigo e diverso de qualquer banalidade com que se reencarna um oleado de duas décadas atrás. Ah, não, isso de modo algum é moda. Só os frouxos pensam em termos de moda; algo passageiro, aleatório, avulso, um bilhete de cinema. Estão enchendo as minhas veias como a calha está enchendo o balde da água da chuva: sua origem está muito distante, e no entanto é absolutamente esperada e precisa.

E essas vitrines... Como seria bom estraçalhar esses vidros com uma rajada de raio laser. O que foi? Aumentaram os preços dos sapatos? Dos meus sapatos? Ora, pois verão! E vocês, o que pensam que estão fazendo? Acham mesmo que alguém deva interessar-se por uma camiseta que mais parece um outdoor, uma lona de caminhão? Ah, sim? Pois tomem isso! Mas o quê? Agora eu não posso sair de casa sem parecer que eu esteja entrando em um campo de batalha? Essa cidade está minada! E lá vêm os bombardeiros, lá estão os atiradores de elite! Aqui: toldem-se da noite de meu casaco - eu lhes digo, atirando sobre os aviões meu melhor abrigo.